(Valor Econômico – Economia – 18/01/2021)
Marli Olmos
Há um mês, o Ministério da Economia apresentou uma resolução que prevê a dispensa de licenciamentos de alvará de construção e habite-se para obras e edificações consideradas de baixo risco. A ideia é incentivar a construção civil e agilizar processos. A decisão, no entanto, preocupa urbanistas e especialistas em Direito, pois esbarraria em inconstitucionalidades. As dificuldades e confrontos que tendem a surgir agregam mais interferências à já caótica dinâmica do espaço urbano e seus habitantes.
Com a concessão de alvarás para atividades de baixo risco, de forma digital e automática, a administração pública se concentraria naquilo “que realmente importa, que são as operações que podem oferecer maior risco”, disse o secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Caio Paes de Andrade, em nota, no dia do lançamento da resolução.
“A proposta do governo traz mais riscos que benefícios. As consequências das obras sofrerem atrasos no licenciamento é menor do que o impacto de ações que venham a ser conflitantes com o interesse público”, afirma o arquiteto e urbanista Fernando de Mello Franco.
A ideia de reduzir o tempo na liberação de licenciamento de obras é positiva para o ex-secretário de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, Fernando Chucre. Segundo ele, a maior parte dos pedidos, hoje, refere-se a pequenos projetos. “É preciso tirar esses processos do balcão da prefeitura. Não se pode penalizar a sociedade porque alguém não cumpre a regra”, diz. Segundo ele, a maior parte dos projetos são legais e prazo de espera chega a representar 10% do custo da obra.
Chucre diz que, embora polêmica, a ideia coincide com uma iniciativa paulistana, que criou o Sistema de Licenciamento Eletrônico de Construção. Essa foi, no entanto, uma decisão tomada pelo próprio município. Torná-la nacional, diz, traz entraves jurídicos.
A resolução do ministério retira dos municípios a atribuição constitucional de licenciar obras e expedir alvará para a atividade. Especialistas demonstram preocupação. O professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas, André Rosilho, afirma que, mesmo sem conhecer a resolução com detalhes, considera “complicado” que um tema que altera normas municipais venha de uma resolução e não de uma mudança na legislação.
“A resolução parece estrangular competências municipais como também se mostra indiferente a aspectos importantes da segurança coletiva. Sua constitucionalidade, no plano formal e material, é duvidosa”, afirma Saul Tourinho Leal, advogado constitucionalista e sócio de Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.
Para ele, a propriedade privada tem função social, que, no caso do direito à cidade, se realiza pelo cuidado urbanístico, pela participação dos moradores nos debates públicos relativos a temas que impactem a vida nas cidades e pelo respeito à competência municipal constante do artigo 30 da Constituição.
“Parece óbvio que, mais uma vez, dificuldades e confrontos advirão”, diz Philip Yang, fundador do Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (Urbem). Para esse ativista urbano, a maior preocupação é que o serviço público de licenciamento será substituído por empresas habilitadas pelo ministério, que integrarão o chamado Mercado de Procuradores Digitais de Integração Urbanístico de Integração Nacional.
“Buscando desesperadamente reverter situações de impasse em processos aprobatórios, o Ministério da Economia lança serviço de licenciamento de obras a ser conduzido por empresas privadas”, afirma Yang. Para ele, “competência municipal por excelência, o licenciamento de obras passa a ser exercido, ainda que de forma optativa, pelo mercado com a interveniência do governo federal”.
Não é de hoje que Yang acompanha os debates que emperram o desenvolvimento saudável dos centros urbanos. Um deles é o Projeto de Intervenção Urbana do centro de São Paulo, que visa possível requalificação da área. “De um lado, agentes do mercado imobiliário clamam pela redução dos valores de outorga onerosa, de outro, entidades de classe, academia e movimentos sociais acusam o governo de entregar de graça o centro às incorporadoras, e exigem valores mais elevados de outorga”, afirma.
Ainda em São Paulo, na Vila Leopoldina, projeto de reconversão de bairro industrial para uso misto segue travada na Câmara Municipal há um ano e meio. “O projeto empaca dado o enfrentamento que coloca em lados opostos comunidades vulneráveis da região e condomínios de classe média, contrários ao assentamento das favelas no próprio bairro”.