Fim de semana de sol. Família reunida no estande de vendas de um novo prédio no bairro. As crianças, inquietas pela demora, correm para lá e para cá. O casal, claramente ansioso – trata-se de uma das decisões mais importantes da vida -, acaba de assinar a papelada. É quando o corretor declara: “Parabéns! Vocês são os felizes proprietários de um derivativo imobiliário”.
A cena é conhecida dos brasileiros, com exceção da parte final da frase do corretor. A maioria das pessoas nessa situação tem certeza de que acabou de negociar a compra de um imóvel e até sente que ele já é um pouco seu, embora ainda esteja na planta. Saem para comemorar, recebem os parabéns de amigos e familiares e já começam a planejar possíveis reformas e decoração. Mas um grupo de técnicos em contabilidade acaba de jogar água no chope dessa festa.
A pedido do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), eles se reuniram em Londres este mês, analisaram relatos sobre a realidade do mercado imobiliário brasileiro e concluíram que, quando assinam esses papéis no estande de vendas, as pessoas passam a ter controle apenas sobre esse contrato, e não sobre o apartamento escolhido.
O entendimento deve provocar uma mudança relevante na contabilidade das incorporadoras imobiliárias brasileiras, que devem ter que adiar o reconhecimento da receita para o momento da entrega das chaves.
Além de gerar opiniões contra e a favor, a manifestação do Ifric – comitê de interpretações das normas contábeis IFRS que chegou a essa conclusão – deveria levar a uma reflexão sobre as transformações ocorridas neste mercado nos últimos anos.
Longe de ter a qualificação técnica dos integrantes do órgão, este colunista havia comparado, em janeiro de 2014, neste mesmo espaço, a compra de um imóvel na planta no Brasil com um contrato futuro de Ibovespa.
Não fiz nada demais. Apenas descrevi um fato que era observável na prática. Naquela época e nos anos anteriores, quando os preços dos imóveis só subiam, muitas pessoas deixaram de tratar aqueles contratos como compra de imóveis e viam neles uma forma de ganhar rios de dinheiro se alavancando no mercado imobiliário. E tiveram muito sucesso por um bom tempo.
O valor a ser pago até a entrega das chaves, normalmente de até 30%, se assemelha, em termos conceituais, à margem de garantia que se deposita para negociar na BM&F (embora não se exija ajuste diário).
O comprador, ou melhor, investidor, não precisa ter todo o dinheiro disponível (e nem o desejo de comprar o imóvel) para ter direito a 100% da valorização sobre o preço do imóvel (ou o valor nocional no caso do derivativo). Em um exemplo: para participar da valorização de um imóvel de R$ 300 mil, a pessoa precisava ter R$ 90 mil. Se o preço do imóvel aumentasse 30% entre o lançamento e as chaves, o que era até uma previsão conservadora naquela época, se vendia o imóvel por R$ 390 mil.
Do ponto de vista do comprador, o resultado era um lucro de 100% sobre os R$ 90 mil alocados, sem considerar os custos de transação, que apesar de serem bastante elevados nesse mercado, eram mais do que compensados.
Quando escrevi isso em 2014, eu chamava atenção para os riscos, que não pareciam bem avaliados, sobre a hipótese contrária, de o comprador estar sujeito à desvalorização sobre 100% do preço do imóvel, que poderia mais do que destruir o valor desembolsado até a chave.
A realidade veio então demonstrar que, como ensinaram Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, não é uma boa estratégia apostar que “dessa vez será diferente”, como fizeram empreendedores deste mercado, corretores e os bancos, que diziam que, após dispararem, os preços dos imóveis iam voltar a acompanhar a inflação.
Sem entrar na polêmica discussão sobre o termo “bolha”, os preços de casas e apartamentos no Brasil acabaram seguindo um padrão semelhante ao que se observou em diversos outros países com séries históricas desses dados. Longos períodos de valorização de residências acima da inflação são seguidos de um ciclo de queda dos preços reais, com uma estabilização em um nível acima do observado antes.
Conforme dados do índice FipeZap, os preços dos imóveis em São Paulo caíram 14% em termos reais desde o pico em agosto de 2014.
O índice do Banco Central (BC), baseado no valor dos imóveis dados em garantia, mostra comportamento semelhante: queda de 22% em 36 meses. Essa baixa veio mostrar aos incorporadores imobiliários, muito antes de o Ifric dizer qualquer coisa, que muitos dos investidores que eles achavam que tinham comprado seus apartamentos na planta anos atrás viam aqueles instrumentos (ainda que sem total clareza) não como um contrato de compra tradicional e sequer como contrato futuro (pelo qual estariam sujeitos à desvalorização integral), mas sim como opções de compra – um outro tipo de derivativo.
Quem compra uma opção desembolsa uma fração do valor do ativo de referência que pretende comprar, de valor conhecido antecipadamente, e tem o direito, mas não o dever, de comprar o tal ativo.
Com os preços em queda, os investidores simplesmente desistiram das aquisições.
Ao julgar os casos de distratos, em que obriga as incorporadoras a devolver aos compradores parte relevante dos valores pagos antes da entrega das chaves, a Justiça brasileira acabou referendando essa característica de opção – uma vez que a perda a que está sujeito o (candidato a) comprador é limitada.
Aliás, a falta de poder da incorporadora imobiliária de exigir do comprador o pagamento referente ao percentual executado da obra, uma vez que ele pode desistir a qualquer momento e receber boa parte do dinheiro de volta, teve peso relevante na decisão do Ifric de dizer que as incorporadoras não podem mais reconhecer a receita da venda desses imóveis ao longo da obra, como é a prática histórica do setor.
Apesar de não negarem a realidade descrita acima, as empresas e também a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) entendem que essa mudança na contabilidade vai levar à produção de balanços que não espelham a realidade do negócio dessas empresas.
Mas será que a essência desse mercado não mudou nos últimos anos, após todos esses contecimentos? Uma possibilidade é que existam situações diferentes para o mesmo contrato. Um para o investidor (disposto a distratar se não tiver lucro à vista) que o encara como opção, e outra para o comprador final que deseja morar e só vai distratar se realmente perder o emprego ou algo do tipo.
Além das questões acima, o episódio talvez deixe outras duas lições para os agentes do mercado brasileiro: não terceirize decisões que considerar muito importantes; e não pergunte se não estiver disposto a ouvir a resposta.