Depois de ficar abaixo de 14% do PIB em 2016, a taxa de poupança doméstica subiu um pouco, atingindo 14,4% do PIB nos quatro trimestres até setembro do ano passado. O nível, porém, continua muito baixo, inferior ao de grande parte dos países emergentes.
Num primeiro momento, essa taxa modesta não deverá ser um obstáculo à recuperação cíclica em curso, mas se tornará um desafio importante quando a ociosidade na economia se esgotar e o investimento avançar mais. Isso terá efeitos sobre as contas externas, com aumento mais forte do déficit em conta corrente, hoje próximo de zero.
No fim da década passada, a taxa de poupança ficou perto de 19% do PIB, oscilando depois na casa de 18% a 18,5% do PIB até 2013. A queda forte ocorreu a partir de 2014, atingindo 13,9% do PIB em 2016. Esse movimento ocorreu basicamente devido à deterioração fiscal, que levou a uma piora significativa da poupança do setor público, destaca Armando Castelar, coordenador de economia aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).
Números das contas nacionais do IBGE mostram a composição da poupança doméstica até 2015, ficando claro o papel do setor público no recuo da taxa como proporção do PIB (não há dados mais recentes). Em 2010, a poupança pública foi positiva em 0,2% do PIB; em 2015, negativa em 5,6% do PIB, observa Castelar. No mesmo período, a das empresas não financeiras subiu de 8,5% para 8,8% do PIB, enquanto a das famílias subiu de 6,9% para 8,2% do PIB. "É a contrapartida da queda do consumo", diz Castelar. A das companhias financeiras passou de 2,3% para 2,7% do PIB. De 2010 a 2015, a taxa de poupança caiu de 17,9% para 14,2% do PIB.
"Existe um problema estrutural de insuficiência de poupança no Brasil, mas a piora recente se deveu ao setor público", diz o ex-presidente do Banco Central (BC) Gustavo Loyola, sócio da Tendências Consultoria Integrada.
Nos quatro trimestres até setembro, houve uma leve melhora, com a poupança atingindo 14,4% do PIB. Para Castelar, isso indica que a taxa deve ter fechado 2017 próxima desse número. A pequena alta, acredita ele, se deveu ao aumento da poupança do setor privado.
No entanto, é um nível ainda muito baixo, consideravelmente inferior aos 20% do PIB do Chile, aos 21,7% do PIB da Colômbia e aos 21,2% do México, segundo estimativas para 2017 do Fundo Monetário Internacional (FMI). Outros emergentes têm taxas ainda mais elevadas, caso da China e da Índia, com poupança superior a 45% do PIB e a 28% do PIB, pela ordem. Uma baixa taxa de poupança dificulta financiar o investimento, prejudicando as perspectivas de crescimento da economia.
No momento, isso não deve atrapalhar a recuperação cíclica, impulsionada principalmente pela queda dos juros, num ambiente de elevada ociosidade, inflação sob controle e retomada incipiente do mercado de trabalho e do crédito. "Hoje, o maior problema é falta de ambiente para investir", afirma Castelar. O Ibre projeta um crescimento de 2,8% neste ano, com uma alta de 3,1% do consumo das famílias e de 3,9% do investimento, um ritmo modesto depois do tombo de quase 30% registrado pela formação bruta de capital fixo (FBCF, medida do que se investe em máquinas e equipamentos, construção civil e inovação) do quarto trimestre de 2013 até o segundo trimestre de 2017.
"No agregado, a baixa taxa de poupança vai virar um problema no momento em que o investimento retomar com mais força", diz Castelar. "Na hora em que se começar a investir mais, isso vai bater num déficit mais elevado em conta corrente."
Depois de atingir 4,4% do PIB no acumulado em 12 meses até abril de 2015, o rombo em conta corrente encolheu com força. Nos 12 meses até novembro, o buraco nas transações de bens, rendas e serviços do país como o exterior ficou em 0,56% do PIB. O déficit menor se deveu à recessão, que diminuiu importações e remessas de lucros e dividendos, e também ao câmbio mais desvalorizado. No ano passado, a melhora das exportações também ajudou, num ambiente de crescimento global mais forte e aumento dos preços de commodities. O saldo comercial atingiu o recorde de US$ 67 bilhões em 2017.
Embora não haja números abertos sobre a poupança em 2016 e 2017, o fato de o país ter registrado elevados déficits fiscais nesses dois anos sugere que a poupança do governo segue "altamente negativa", destaca um relatório da A.C. Pastore & Associados, consultoria que tem como principal sócio o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore. O texto observa que, como o teto de gastos levará a um ajuste fiscal "bastante gradual", essa taxa deverá continuar negativa por um longo período.
O teto limita o crescimento das despesas da União à inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior, levando a uma melhora gradativa do resultado fiscal. "Na ausência de uma forte elevação da poupança privada, seria necessário um déficit em conta corrente da ordem de 5% a 6% do PIB para atingir taxa de investimento de 20% do PIB", avalia o estudo da A.C. Pastore. Como a poupança doméstica é escassa, taxas de investimento mais altas precisam ser em parte financiadas pela absorção de poupança externa, na forma de déficits em conta corrente, diz o texto.
"Países com macroeconomia muito sólida podem por algum tempo sustentar déficits mais elevados, mas é preciso trabalhar muito no campo do ajuste fiscal para atingir tal ponto", observa a consultoria. Nos quatro trimestres até setembro de 2017, a taxa de investimento ficou em 15,5% do PIB. Em 2013, chegou a 20,9% do PIB.
Em entrevista ao Valor publicada em novembro, o economista-chefe da Verde Asset Management, Daniel Leichsenring, destacou as implicações negativas do tombo da poupança doméstica sobre o crescimento potencial, a evolução das contas externas e o recuo dos juros de longo prazo. Segundo ele ele, a poupança do setor privado, que aumentou nos últimos anos, deve diminuir um pouco com a retomada, enquanto a do setor público vai melhorar lentamente, justamente devido à estratégia de ajuste gradual das contas públicas.
"Nós deveremos ter um déficit em conta corrente maior para uma mesma taxa de investimento", afirmou Leichsenring. Se antes da crise o buraco na conta corrente chegava a 4% do PIB com uma taxa de investimento de 21% a 22% do PIB, é possível que o país chegue a rombo externo mais ou menos equivalente com uma FBCF de cerca de 18% do PIB, exemplificou.
Déficits em conta corrente na casa de 4% do PIB tendem a acender a luz amarela para países emergentes e levar a crises externas, especialmente se associados a más políticas econômicas. Loyola considera um déficit de 2% a 2,5% do PIB razoável para uma economia como a brasileira. O nível elevado de reservas, acima de US$ 380 bilhões, é um trunfo para o país, lembra Loyola, ressaltando a redução da vulnerabilidade externa. "Essa situação das contas externas mitiga o risco de uma crise cambial", afirma ele, observando, porém, que o quadro fiscal segue delicado, com déficits elevados e dívida bruta em trajetória explosiva.
Para Castelar, o ideal seria que o Brasil tivesse uma taxa de poupança próxima a 20% do PIB. "E a grande melhora terá que vir do setor público." Dada a expectativa de recuperação gradual da situação fiscal, isso tende a levar muito tempo. A expectativa, hoje, é que o resultado primário (que exclui gastos com juros) só volte ao azul no começo da próxima década. Se conseguir uma poupança mais alta, fruto de uma situação macroeconômica mais ajustada, o Brasil poderia sustentar déficits maiores em conta corrente.
Em relatório, o Credit Suisse aponta "dois grupos distintos de países emergentes, identificados com base nos dados do Banco Mundial entre 1980 e 2015": as economias de alto crescimento do PIB e taxas de poupança e investimento elevadas e os de baixo crescimento do PIB e baixas taxas de investimento e poupança. O Brasil está no segundo grupo, ao lado de economias como México, África do Sul e Argentina. No outro grupo, predominam países asiáticos como China, Índia e Malásia.