(Estado de S.Paulo – Economia – 31/03/2021)
Bruno Romani
Historicamente, a negociação de um imóvel no Brasil tem ar de mistério. Quase sempre, as partes realizam o ritual de tentar tirar vantagem sobre um preço cuja origem está longe de ter precisão científica. É algo que a Loft, que na semana passada recebeu um aporte de US$ 425 milhões e agora tem valor estimado de US$ 2,2 bilhões, está tentando mudar. Na receita da startup de compra e venda de imóveis estão inteligência artificial (IA) e volumes absurdos de dados – a ideia é que os algoritmos possam ser “corretores” não apenas no sentido de serem negociadores, mas também no de elementos que ajustam a rota dos preços de apartamentos.
Quando Mate Pencz e Florian Hagenbuch fundaram a Loft em 2018, a inspiração eram as americanas Opendoor e Zillow - empresas que utilizam dados do setor para realizar transações de compra e venda de imóveis. Mas tinha um detalhe: nos EUA, as informações do setor imobiliário são organizadas de forma mais centralizada, o que permite o uso ligeiro de algoritmos. No Brasil, ao contrário, as informações são fragmentadas. Então, a Loft precisou primeiro construir um banco de dados “básico” antes de colocar a IA para funcionar.
A opção mais óbvia seria fazer a coleta de informações de classificados. Nas palavras de Pecz, isso seria um erro. “As informações de classificados não refletem os valores reais dos imóveis. Eles são um reflexo daquilo que as pessoas imaginam ser os valores”, diz ele ao Estadão. Era necessário cavar mais fundo.
A empresa passou a abordar cartórios de registros de imóveis para a compra de grandes volumes de matrículas - o objetivo era ter dados de localização, metragem e transações de pelo menos 20 anos. “No começo, os funcionários dos cartórios olhavam para a gente com desconfiança. Foi preciso explicar o que estávamos fazendo", lembra Márcio Reis, vice-presidente de produtos da Loft.
No início, as informações eram referentes à região dos Jardins, em São Paulo, primeira em que a Loft atuou. Detalhe: muitas das informações estavam impressas. Reis diz que foi preciso criar algoritmos de visão computacional para extrair as informações dos documentos, como data, endereço e valores. Ainda assim, as informações eram insuficientes. “Perdemos dinheiro nas primeiras transações, porque nossas ferramentas ainda não estavam ajustadas”, diz Pencz.
Dados de cartório, contudo, não eram suficientes para descobrir metragem, endereços e valores dos imóveis. O próximo passo: comprar bases de dados de prefeituras, referentes a IPTU, e dos Correios para os endereços. “Nenhuma delas é perfeita, então foi preciso agregá-las para fazer o ‘tira-teima’”. Todas são acessíveis publicamente - a diferença é que poucas pessoas fariam isso sozinhas.
O tamanho do banco de informações seguiu a expansão da empresa. Depois dos Jardins, a empresa demorou quase um ano para chegar ao segundo bairro, o Itaim. No período, não apenas o banco de dados foi se desenvolvendo, como também os algoritmos que pegam essas informações e determinam os preços - os Jardins foram o laboratório da Loft. Atualmente, a empresa está em 116 bairros em São Paulo e 14 no Rio de Janeiro.
O algoritmo também evoluiu: atualmente, ele está na sua quarta geração e foi batizado de “Robson” - cada versão da IA leva um nome humano. Antes do Robson, existiram David, Leia e Amadeus. Cada nova versão analisa mais fontes de dados e agrega novas tecnologias e recursos de inteligência artificial.
O que também ajudou a empurrar os algoritmos é a entrada de dados de clientes. Um dos pontos mais discutidos em inteligência artificial é o uso de “dados não tradicionais”. Ou seja: informações que não pertencem a bancos oficiais relacionados a determinados segmentos (por exemplo: dados de um birô de crédito para quem busca financiamento), mas que revelam bastante sobre a pessoa. No caso da Loft, a maneira como o cliente se relaciona com a plataforma entrega informações. Por exemplo, a opção por um tipo específico de acabamento na reforma ou a demanda por uma certa de planta de imóvel.
Houve um reforço ainda maior em relação aos dados de clientes quando a empresa abriu em agosto de 2020 o marketplace, no qual é possível comprar e vender diretamente. Funciona não apenas como uma nova frente de negócios, mas também como uma nova porta de entrada de dados sobre precificação.
Inflação e outros fatores
Além de dados imobiliários e dos clientes, o algoritmo da Loft olha para inflação, taxa de juros e índice de lançamentos imobiliários em determinado bairro. “Uma característica do setor é que existem poucos dados. Durante a vida, as pessoas compram e vendem poucos imóveis, então a IA precisa ser capaz de olhar para transações do passado e fazer os ajustes de inflação e juros”, diz Reis.
No início, a startup tinha dois algoritmos separados: um para precificação baseado nos dados imobiliários e outro para o ajuste de preço baseado em fatores econômicos. Tudo isso foi fundido e, atualmente, a IA da Loft opera com um único e complexo modelo.
Outros dados pouco comuns também passaram a alimentar a máquina. Informações da prefeitura, como nível de arborização e taxas de criminalidade dos bairros, do Detran, como volume de tráfego, e do IBGE, como nível de emprego dos bairros, também fazem parte da conta. Dados do Google Maps, sobre a presença de comércio e serviços, também já são considerados. Reis explica que a empresa já tem tecnologia para detectar quando um bairro começa se tornar mais badalado ou mais decadente, mas que ainda não está utilizando esses dados.
Todas as informações são mantidas atualizadas para tentar refletir em tempo real os valores dos apartamentos. Reis diz também que a empresa segue sempre em busca de mais dados para deixar a IA refinada.
Temores
“Temos uma sociedade dividida entre digital e analógica. É preciso ficar atento para não excluir uma parte da população quando um segmento é digitalizado”, diz Anderson Soares, coordenador do Centro de Excelência em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG). De fato, existe uma preocupação de que startups do setor imobiliário colaborem para gentrificação de bairros, colocando preços altos e expulsando moradores ligados às regiões. É algo que Pencz refuta: “A IA traz transparência ao processo, evitando a especulação”, diz.
Especialistas em IA concordam que a tecnologia traz pragmatismo a um mercado acostumado com intuição, mas lembram que é sempre importante manter a transparência do algoritmo. “A IA pode tomar decisões inexplicáveis para o usuário humano, que pode então ficar na dúvida sobre o que está acontecendo. A empresa precisa explicar o que levou a IA a tomar uma particular decisão”, diz Fabio Cozman, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
“Por exemplo, no caso de uma decisão um pouco surpreendente, a explicação poderia ser: ‘este preço foi dado levando em conta a média do bairro X e também o fato de o apartamento ter uma vista muito bonita para o parque Z’", diz.
Outro temor é que a IA possa apresentar algum tipo de viés que prejudique quem está negociando com a Loft. Quanto a isso, Reis é claro: a empresa trabalha para deixar o algoritmo preciso e transparente, mas também preserva uma margem. “Somos uma empresa e temos de ter a nossa margem. Quando compramos um apartamento, o preço oferecido não é o quanto o imóvel vale. A negociação precisa cobrir os custos e ter margem”, diz. Segundo ele, porém, o algoritmo sempre será justo na oferta, considerando também esses fatores. Ele lembra também que quem usa o marketplace para negociar o imóvel com terceiros pode ter um valor maior.
Em relação a outros tipos de viés, Reis afirma que nunca detectaram algo problemático na versão pública dos algoritmos, apenas em versões de testes. “Somos uma startup e sempre podemos melhorar. A IA, porém, permite abrir a caixa preta do setor imobiliário”.
Em outras palavras: no mundo imaginado pela Loft, não existe chance de acertar o preço de um apartamento perguntando para um parente próximo ou para o porteiro do prédio.
IA faz a detecção de pessoas em fotos após polêmica
Não é só na definição do preço de apartamentos que a Loft utiliza inteligência artificial. Os algoritmos precisaram entrar em ação após um caso grave envolvendo a companhia. Em julho de 2020, o anúncio de um apartamento à venda por R$ 475 mil no bairro de Pinheiros, São Paulo, causou escândalo ao trazer a imagem de uma idosa em uma cama hospitalar instalada na sala do imóvel.
O caso, claro, caiu mal dentro da empresa, que acionou o time de IA para desenvolver um algoritmo de visão computacional capaz de detectar pessoas e imagens impróprias nos cômodos. Quando os algoritmos enxergam algo de errado nas fotos dos anúncios, a equipe de auditoria de imagens é acionada para intervir diante do problema. Atualmente, a ferramenta é usada internamente, mas, segundo a startup, deverá ser disponibilizada em breve para os clientes durante a criação de anúncios.